A Garrafa — Primeiro Capítulo
- O. Erick Trautvein
- 21 de mai. de 2022
- 12 min de leitura
Fechei a mandíbula.
Meu dente rompeu a crosta do pão. Torci o nariz.
Levantei a cabeça para cima e puxei para baixo com as mãos. Arranquei um pedaço. Mastiguei a massa seca. Estava sem manteiga. A textura do miolo lembrava a massa de polir escudos do meu tio. Engoli em seco.
Olhei para a Garrafa sobre a mesa. A poeira acumulava em sua superfície ofuscando a luz da manhã que entrava pela janela e refletia nas suas escamas negras. Ela parecia querer me contar algo, queria falar…
— Não toque nessa garrafa!
Arregalei os olhos ao escutar a voz dura de meu tio. Minha mão estava quase tocando a garrafa.
— Tá me ouvindo?!
Recolhi meu braço. Olhei para cima. Mastak estava com a expressão rígida de quando martelava suas espadas. Sobrancelhas cerradas.
Tudo indicava para ficar calado.
— Por quê? — Murmurei sem saber o motivo de tê-lo feito.
— Só não toque! — Respondeu de forma brusca balançando as migalhas penduradas em sua barba ruiva. Bateu a caneca de ferro na mesa, espirrando leite de cabra por todo lado. Era a martelada final. Assunto encerrado.
— Agora, vá buscar carvão! — Jogou um Torkiano de prata para mim. Peguei a moeda no ar e saí antes que mandasse polir os escudos. Os malditos escudos...
Minha vida era assim desde que me entendia por gente. Meu pai desapareceu quando minha mãe engravidou, minha mãe morreu quando nasci. Deles, só fiquei com meu nome esquisito, Xelt, que significa "aquele que inventa" na língua do povo insetoide.
Cresci na ferraria ajudando meu tio. Ser ferreiro era uma ótima profissão na capital. Se fosse esforçado, conseguiria trabalho no círculo rico da cidade e ganharia muito dinheiro. Isso fazia de mim escravo de meu tio.
Peguei a cariola de madeira encostada na lateral da oficina e saí rumo ao carvoeiro. Virando a primeira ruela a caminho do carvoeiro, avistei a torre de Torks.
Parei para admirar sua imensidão,
Seu formato lembrava um martelo em pé, no topo possuía duas pontas que lembravam a chifres de bigornas rasgando o céu de horizonte a horizonte. Diziam ser a maior construção do continente. Talvez do mundo inteiro. Parecia estar próxima, mesmo estando a dez milhas da sua base. Sua superfície mudava de cor conforme a estação do ano. Agora estava na cor verde musgo. Início do verão.
Voltei a andar, sem tirar os olhos dela.
Lembrei de quando perguntei a meu tio sobre ela.
— Quem construiu a torre? — Perguntei dando corridinhas para acompanhar os passos largos de meu tio.
— Torks. Há dez mil anos.
Parei de boca aberta e fiquei olhando-a. Naquele dia, nenhuma nuvem a cobria. Foi a única vez que a vi por inteiro. Refletia na frente a luz do sol vermelho e na lateral a do sol amarelo. Lembrava uma cachoeira de pedra polida.
Corri novamente para alcançar meu tio - ele estava virando a esquina.
— Como faço para ir lá?
— Apenas os convidados dele podem ir lá. — Falou com sua costumeira carranca, envolta na sua grotesca barba ruiva.
— Como faço para ser convidado?
Ele parou e respirou fundo. Apoiou no chão a pesada barra de ferro que trazia no ombro. Esfregou a barba por um tempo, olhou para a torre e falou.
— Lá de cima ele vê tudo. Se um dia se mostrar digno de conhecê-lo, ele irá chamá-lo. Não se preocupe com isso.
Ora, estava aí algo que não entendia. Como um ser poderia viver para sempre e saber de tudo o que eu fazia? Sempre me perguntei se ele não tinha nada melhor para fazer. Afinal, ele era um Deus!
Durante minha infância ouvi frases como:
"Graças a Torks a torta não queimou!"
"Torks vê tudo e não vai ficar feliz contigo!"
"Pela bondade de Torks não faça isso, PIRRALHO!"
Essa última vinha acompanhada de uma surra bem dada.
As únicas provas da existência desse "Torks" eram a torre, as sandálias de meu tio e seus soldados particulares. Estes últimos raramente passavam ali na zona pobre da capital e não provavam nada. Parecia que todos estavam mentindo para mim.
Senti a roda de madeira da cariola solavancar, tinha chegado no final da ruela de terra. Saí numa larga rua pavimentada com pedras vermelhas. Diziam que o próprio Torks assentou cada uma dessas lajotas. Já passava da hora dele voltar e arrumá-las. Tinha que andar desviando com a roda para ela não ficar presa entre as lajotas.
Andei mais um pouco e cheguei no Muvuca. O mercado mais movimentado do círculo pobre da cidade. Ali tinha barraca de tudo: peixe-seco, pães, vassouras, vasos, tapeçarias, banha de porco e todo tipo de quinquilharia.
Muitas criaturas do círculo médio da cidade pagavam a taxa do portão para fazer compras ali, afinal, era tudo baratinho. A taxa do portão era o preço que se pagava para entrar ou sair de algum dos círculos da capital.
Torks criou o sistema de muralhas após a rebelião contra os impostos - isso foi há oito séculos atrás. Para acalmar a rebelião, ele revogou todos os impostos. Vendeu suas terras dentro da capital. Só manteve os três círculos de muralhas, o abismo e pontes além da muralha exterior e passou a cobrar taxas para atravessar os portões. Isso mantinha a segurança da capital contra invasores e isentava Torks de qualquer responsabilidade, como justiça, comida e segurança interna. De quebra, mantinha seus cofres transbordando de moedas.
Nunca mais houve revoltas na cidade.
Uma criatura esverdeada, com oito palmos de altura pulou na minha frente. Era meu amigo Deru, um Gabiru. Nunca gostei de Gabirus. Verdes, baixinhos e geralmente egoístas. Mas aquele era especial.
O conhecia há muito tempo.
Com frequência, arranjávamos confusão pela cidade. Ele possuía grandes orelhas, uma sempre ficava torta para baixo e a outra de pé. Estavam cheias de argolas douradas que contrastavam com o verde de sua pele.
— Ei Xelt, vai um peixe? — Perguntou Deru sorrindo com seus dentes pontudos, enquanto estendia um espeto de peixe frito para mim.
— Olha, preciso ir até o carvoeiro, mas mais tarde eu passo para levar um!
— Ah sim! Viu, pergunta ao carvoeiro se ele quer o melhor peixe frito do continente.
Antes que eu pudesse respondê-lo, virou as costas e se dirigiu a outra pessoa na multidão.
Desviei de um insetoide. Tinha quase dois metros de altura, seis patas e longas antenas. Sua “pele” era marrom. Estava com pressa. Carregava, com seus quatro braços, rolos de tapeçaria da mais alta qualidade.
Passei debaixo das pernas do Gigamudo.
O gigante fazia entregas de bebidas com um enorme barril de hidromel nas costas. Usava roupas de couro sob medida e sandálias de madeira. Vivia de mau humor. Xingou-me do alto dos seus oito metros de altura e continuou a caminhar. Seus passos faziam a rua tremer.
Parei em frente à Taverna do Bode.
Acenei para o Bardo Grisalho sentado na porta, e ele balançou a cabeça e sorriu. Tirava lindas melodias de seu alaúde velho. Possuía uma vasta barba esbranquiçada e se recusava a dizer seu nome. Adorava ouvir suas histórias.
Quando ia na taverna buscar tortas para meu tio, escutava seus ensinamentos.
"Segure suas moedas! Esta cidade é o umbigo do mundo. Todo tipo de criatura malandra passa por aqui. Tome cuidado menino!" Ele sempre me alertava dos perigos do mundo.
Apertei a moeda pendurada em meu pescoço.
— SAIs DAs FRENTEs!
O grito agudo veio de Sliterin, o homem-serpente avarento, dono do banco mais seguro do bairro pobre. Montava sua tartaruga azul gigante trazida do Ninho das Areias. O maluco vinha na minha direção!
— SAIAs! SAIAs! SAIAs! — Gritava balançando sua língua fina e bifurcada para fora da boca, dando aquele sotaque esquisito cheio de ‘s”.
Puxei o carinho.
"Rack!"
A roda ficou presa entre duas lajotas da rua.
Praguejei. Estava emperrado.
Agarrei o cabo e forcei. Nada.
Puxei de novo e nada.
— SAIS PIRRALHOS!
Como todas as tartarugas do Ninho das Areias, aquela sob Sliterin era mais rápida que um cavalo e avançava a todo galope contra mim!
As patas da tartaruga faziam cada pedra da rua tremer.
Minha canela vibrava. Fechei meus olhos sem saber o que fazer.
Uma mão se fechou em minha orelha.
Puxou com a força de um tenaz incandescente.
Gritei largando o carrinho de carvão. Fui arrastado para longe da rua.
Escutei a pata da tartaruga esmagar cada madeira do carrinho.
— Xelt! Abra o olho!
Busquei a dona da voz. Era Shera, a dona da Taverna do Bode, amante de meu tio. Eu odiava aquela gorda!
—Veja só o que tu fez com o carrinho de seu tio! — Gritou apontando o dedo grosso e enrugado para os destroços de madeira no meio da rua.
— Ham...descul… — Murmurei e olhei para meus pés.
— Pedir desculpas não vai consertar o carrinho!
Ela esmagou mais a minha orelha.
— Me larga!
A taverneira puxou minha cabeça para cima, encarei sua cara rechonchuda cheia de sardas.
— Seu tio trabalha o dia todo naquela MALDITA OFICINA! Tu ficas quebrando as coisas dele! Ele vai precisar comprar outro carrinho antes de conseguir comprar uma carroça. Ele devia te mandar para o quartel do capitão Reselg!
Aquilo foi demais.
Puxei o braço da taverneira e lasquei uma mordida.
Livre dos dedos calejados de tanto sovar pão, minha orelha respirou aliviada.
Senti gosto de sangue em minha boca, enquanto corria para longe. Cuspi.
— Volte aqui Xelt! Seu tio vai ficar sabendo de tudo!
Ela gritou uma porção de coisas, porém já estava longe.
Dobrei a ruela e desapareci.
Não sei o que meu tio via naquela mulher. Estava sempre gritando com as pessoas, e além de tudo cheirava a alho e cebolinha. Parei ofegante na frente da porta de casa.
— Me mandar para o quartel… — Resmunguei cerrando os punhos.
Capitão Reselg era um homem ranzinza e cruel. Amarrava os recrutas indisciplinados seminus em árvores pela cidade e deixava-os lá durante dias, sem comer. As pessoas diziam que fazia parte do “contrato” de quem “aceitava” virar soldado dele.
Notei que a forja ainda estava em silêncio, meu tio não havia começado seu trabalho. Ele ficaria furioso com a perda do carrinho. Provavelmente teria de polir escudos por um bom tempo para compensar o prejuízo.
Meu tio tinha um acordo com o mestre da muralha. Tal acordo consistia em deixar meus dedos em carne viva de tanto polir escudos e capacetes dos soldados. Em troca, o traste do meu tio não precisava pagar para atravessar a muralha que separava o círculo pobre do médio. Isso lhe permitia vender mais espadas e utensílios.
Tentei abrir a porta, estava trancada.
Será que ele foi buscar ferro?
Me aproximei da janela do quarto. Mexi uns ferrinhos pela fresta da janela e a abri.
Pulei a janela e fui até a cozinha. Tomei um copo de água para tirar o gosto de sangue da boca. Minhas mãos tremiam. Não queria encontrar meu tio. Não queria nem saber o castigo quando ele soubesse que mordi o braço de Shera.
Avistei a garrafa enegrecida descansando na mesa. Sua superfície escura de textura escamosa sussurrava para mim.
Cheguei mais perto.
Era raro ficar algum tempo sozinho com ela. Sempre tinha tarefas a serem feitas. Estiquei a mão até a garrafa.
— Não toque nessa garrafa!
A voz de meu tio ressoou dentro de minha cabeça.
Parei. Olhei para os lados. Ninguém em casa.
Aproximei meu indicador até quase tocá-la.
“Rack!”
Um som de madeira rangendo veio da despensa. Minhas mãos enrijeceram. Pulei para trás ao ver um enorme rato sair correndo e sumir na escuridão da casa.
Fiquei aliviado, era só mais um rato.
Se o gabiru Deru estivesse ali, teríamos caçado o rato a pedradas para vender ao mestre das sopas. Ele fazia as melhores sopas da cidade e pagava duas moedas de cobre por cada rato.
Olhei novamente a garrafa.
Ela me chamava. Devia deixá-la na mesa e sair dali. Mas já estava ferrado mesmo. Meu tio já ficaria puto com o carrinho e a mordida. Dane-se.
Peguei a garrafa.
Passei o dedo na superfície. Um formigamento percorreu minha mão. Era gelada. Diferente de tudo que já tocara. Uma mistura de lã com ferro duro.
O que haveria ali dentro?
Uma vez comentei com o Bardo Grisalho:
— Tu não acha que tem areia viva dentro daquela garrafa preta do meu tio, esperando para ser liberada e engolir toda a cidade?
Ele engasgou com sua bebida. Passou a mão na minha cabeça e disse:
— Esqueça essa garrafa filho. Já ouvi boatos de que Mastak foi obrigado a manter aquela garrafa em cima da mesa pelo próprio Torks. Uma aposta ou algo do tipo. Melhor não mexer nela, tu conheces teu tio... Agora, só me venha falar de garrafa se for uma cheia de vinho!
Dane-se meu tio. Dane-se o bardo.
Abri a garrafa. Silêncio.
Guardei o saca-rolha na gaveta. Joguei a rolha para trás. Ela bateu no fogão cheio de lenha e caiu embaixo da mesa. Aproximei meu olho para dentro da garrafa.
Estava escuro. Virei a garrafa de ponta cabeça. Sacudi.
Não havia nada. Vazia. Encarei-a, triste. Passei anos imaginando o que teria ali. Talvez um pergaminho raro, um líquido milagroso ou até mesmo a tal areia viva.
Coloquei a garrafa na mesa.
Agachei e tateei o chão. Encontrei a rolha. Um ruído baixo começou a ressoar na sala. Estremeci e levantei com pressa. Bati a cabeça na mesa ao fazê-lo. Derrubei tudo. Pão, pasta e a garrfa.
Vi a garrafa cair.
Estiquei-me ao máximo para pegá-la. Consegui encostar nela com a ponta dos dedos e acabei empurrando-a mais para frente!
— Não...
A garrafa fez um som agudo ao cair no chão.
Som de ferro sendo malhado, agudo e profundo. Meu sangue esquentou e esfriou, como uma espada sendo temperada. A garrafa estava inteira.
Com a respiração acelerada, agarrei a maldita e tentei tampá-la.
A rolha não queria encaixar. Forcei e não consegui.
Algo a empurrava para fora.
Apliquei mais força.
Nada.
Temi ter quebrado a garrafa. Girei a rolha na tentativa de encaixar.
Perda de tempo. Era como tentar guardar uma espada na bainha de faca. Só queria deixar tudo como estava antes. Apertei a tampa com o polegar e bati a base da garrafa na mesa.
“Plack”
Pronto, tampado.
Coloquei a garrafa na mesa. Sorri. Levantei uma sobrancelha. Prendi a respiração. A rolha da garrafa afundou diante de meus olhos. Tentei puxá-la de volta para cima. Ela deslizou de meus dedos e sumiu dentro da garrafa.
Enfiei o indicador lá dentro, mas não encontrei.
— Estranho...
Puxei meu dedo para fora.
Não saiu.
Estava preso.
Minhas pupilas dilataram. Vi dois olhos no reflexo da garrafa piscarem para mim. Meu dedo formigou. Segurei a garrafa com a outra mão e puxei.
Não saiu.
— Sai! — Gritei enquanto prendia a garrafa em meus joelhos e puxava.
— Sai! Não quero morrer polindo escudos!
Puxei. Puxei. A garrafa escalou meu dedo. Minhas entranhas gemeram.
— Afasta-se de mim maldita!
Peguei um pote de banha de porco na despensa e despejei no dedo engarrafado. Virei o indicador, foi em vão. A garrafa chegou ao fim do dedo.
Peguei a faca do pão no chão e a posicionei no talo do indicador. Respirei fundo, pressionei a faca contra a pele. Cortei de leve a pele. O sangue se juntou com a banha de porco e uma gosma vermelha pingou no chão.
Gritei e joguei a faca na parede. Cai de joelhos no chão.
A garrafa sorria.
Meus dedos lutavam entre si para ver qual seria engolido primeiro.
— AAAAI!
A garrafa descascava minha pele. Meus olhos lacrimejaram. Levantei meu braço engarrafado e bati a garrafa no chão enquanto gritava.
Ela continuou escalando e chegou no cotovelo.
Corri aos tropeços pela casa até a porta.
Trancada.
Esmurrei a porta.
— ABRA! ABRA! ME DEIXEM SAIR!
Aquela coisa estava em meu ombro.
Vi a tranca interna mantendo a porta fechada. Bati a mão algumas vezes nela antes de conseguir abri-la, meu pescoço estava virado para a esquerda e a garrafa ameaçava engolir minha cabeça.
Abri a porta.
Do outro lado da rua, avistei meu tio trazendo uma enorme barra de ferro no ombro. Nossos olhos se encontraram. Pela primeira vez, vi medo em sua carranca. Ele largou a barra de ferro e correu em minha direção.
Estiquei o braço em sua direção.
"ZAP!”
Tudo ficou escuro. Ouvi um zunido estranho.
Tentei andar. Perdi o equilíbrio. Meus pés descolaram do chão. Batio joelho na quina da escada. Gemi de dor.
Uma mão grande e cheia de calos se fechou em meus tornozelos.
— Xelt, vou tirá-lo! — Ouvi ao longe a voz de meu tio.
Minha canela estava rachando ao meio. De um lado, a mão puxava com sua força descomunal de ferreiro e, do outro, a garrafa terminava de me engolir. A mão calejada de tanto malhar ferro começou a suar. Foi escorregando, até chegar no meu pé.
Por fim, escapou. Meu dedão passou pela boca da garrafa.
“Tluck!”
Olhei para cima. A luz do dia se despedia. Foi se afastando e ficando para trás. Sobrou apenas escuridão. Escuridão e silêncio. Como da vez em que caí no poço na cidade. Cair em buracos escuros era a minha sina!
Mexi meus lábios. Nenhum som saiu.
Gritei com a força de um morto.
Um ar frio congelou meu peito. Silêncio absoluto.
Tudo isso era culpa de Shera. Se ela não tivesse falado do quartel, não a teria mordido e não estaria nessa situação. Sliterin tinha parte da culpa, ele e sua tartaruga gigante deveriam ser comidos vivos. Maldito homem serpente!
Forcei minhas pálpebras para cima. A escuridão permaneceu em meus olhos.
Tentei contar o tempo.
Perdi as contas perto dos duzentos e quarenta, quando meus dedos começaram a tremer. Em seguida, minhas panturrilhas e, por fim, meu queixo.
Minha respiração acelerou.
Coloquei a mão na cabeça e puxei meus cabelos. Gritei, um grito agudo.
Arregalei os olhos na escuridão. Me virei para trás. Já estava criando monstros.
Demorei a perceber. O som vinha de mim. Tentei de novo — AJUDA!
Ouvir minha voz foi um alívio. Parei de tremer, respirei fundo.
Porém durou pouco.
Meu corpo foi puxado para baixo. Um vento frio veio do fundo do abismo. Empurrando a pele do meu rosto contra minha cara. Meus cabelos esvoaçavam e a roupa chacoalhava. Estava caindo.
Abracei as pernas esperando o pior.
Cai por muito tempo, minhas pernas formigavam.
Estiquei-as. Abri os braços. O vento frio balançava meus cabelos.
Dei uma cambalhota no ar. Gostei daquilo. Virei dezenas de piruetas no escuro.
Senti uma agulhada na barriga, ela se remexia sob minha mão. Demorei para formar um pensamento. Levei a mão à cabeça. Bocejei.
Compreendi. Estava com fome.
O vento diminuiu a força com que golpeava minha pele. Ficou quente. Meus braços e pernas ficaram pesados. Tentei virar o pescoço. Não consegui. Minhas mãos ficaram rígidas. Recusando meus comandos. Minha pele fervia e suava.
O desespero tomou conta da minha respiração. Esse era o único movimento que meu corpo fazia. Queria gritar, mas minha boca não se mexia. Meu corpo era uma pedra. Não sei por quanto tempo fiquei ali. Cada respiração parecia levar dez anos para passar.
A agonia foi interrompida. Minhas costas colidiram contra uma parede líquida. Meu corpo inteiro esfriou à medida que fui afundando. Duas cachoeiras de um líquido doce entraram pelas minhas narinas, queimando tudo.
Meu peito gritava por ar.
Não encontrei ar.
Afundei.
Sentir o gosto do líquido gelado entrar por meus lábios imóveis. Era cidra.
Lembrei de um dia chuvoso.
Havia ido buscar uma torta de maçã na taverna.
As pessoas estavam aglomeradas perto do fogo, ouvindo o Bardo Grisalho cantar uma trova. Contava a história de um bêbado que pulou em um imenso tonel de cidra. “Com alegria mergulhou. ♫♫” A notas do alaúde eram doces como a cidra.
Meus pensamentos formigavam no ritmo da música.
“Com alegria afogou-se. ♫♫”

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